terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O Silêncio

Assalta-me o silêncio. Toma tudo a minha volta, num ataque terrorista ao que é meu e só meu. Toma o som e a música de um só trago. Consume a minha audição, característica que tanto prezo. Estou sem barulho. Sem som. Estranha sensação. Estou constantemente a ouvir coisas variadas e disparatadas. Conversas de gente que dispenso a minha apresentação, sons de aparelhos metálicos e com luzes a piscar, tic-tac como um tambor na minha mente. E agora, nada! O silêncio. Reconheço-o facilmente, pois é sempre igual. O absoluto vazio do som. Perfeita harmonia de falta palavras e consoantes sem semelhante algum. Apesar de não ouvir nada não consigo deixar de, talvez num acto distraído e altruísta, colocar questões que merecem resposta. Mas não quero ser invejoso e tirar daqui o silêncio que acabou de se instalar e que veio para ficar. Desconheço a linguagem gestual e sou muito mau em mímica. Sempre fui dado às palavras. Tal é a magnitude deste silêncio, que não o vou perturbar com a minha voz. Mas gostava que me respondessem. Procuro me expressar. Procuro questionar, mas faço-o sem falar. Não vou ser eu a quebrar este silêncio cristalino.
Porquê cristalino? Não é possível ver o silêncio, e duvido que consiga focalizar este fenómeno estranho. E por fim, não envelhece nem se altera com a idade. É sempre constante e preocupante. Mas disse cristalino, que seja cristalino então este silêncio vasto e organizado. Organizado, porque é ordenado e sem falhas. Sim, organizado já faz mais sentido. Parece ser uma palavra mais adequada.
Ainda assim tenho questões a serem respondidas. E não se tratam de questões da minha articulação e organização vocabular, disso trato com a minha professora de gramática que pouco me ensinou e muito me baralhou. Gostava então de questionar o silêncio, sobre a razão desta invasão repentina. Terá sido algo que eu disse? Terei eu ofendido o silêncio, com todo o barulho que fiz ao longo desta minha vida? Gostava de me expressar e falar com o silêncio. Perguntar como vai e o que é que o preocupa. Mas não o vejo, nem lhe toco. Apenas o consigo ouvir. Ou será que não ouço? Será possível ouvir o silêncio? Questão incessante esta! Ora bem, o silêncio é a ausência de som e eu só consigo ouvir o som. Portanto se não o ouço, nem vejo e nem pouco sou capaz de o cheirar ou tocar, por deus, quão sozinho deverá estar o silêncio! Carente de algum tipo de afecto e conversa com alguém disponível. Abandonado, o silêncio, na noite escura e pelas ruelas da minha velha cidade. A deambular por entre quartos de apaixonados que se olham nos olhos em pleno silêncio, sem trocar uma palavra. Mas basta uma palavra, uma só e lá vai ele embora para longe.
Agora que escrevo estas palavras, noto que não estou mais acompanhado pelo silêncio. Por cada letra que coloco, um pequeno som me acompanha. Ao longe, outro som dispara, acompanhando o barulho que se começa a instalar. Uma música por baixo algures à minha volta, uma discussão do lado de lá e um crepitar de comida a fazer-se na minha cozinha branca. Não se faz sozinha a comida, e eu já estou com fome. Mas sem querer ofender o pobre do silêncio, com o som involuntário das minhas dentadas e esforço por mastigar a dura carne que aquece e arrefece dentro em pouco, vou continuar então a reflectir com silêncio (mas infelizmente, sem ele).
Não vejo o silêncio. Mas sinto-o, sim claro, sinto o silêncio. É pouco discreto! Quando chega, faz-se logo notar. Cria um pequeno vácuo, sem ocupar espaço algum. Mas mesmo assim deixa cada um desconfortável. Não é bem-vindo, o coitado. Não ocupa espaço, lugar ou habitação. Mas estranhamente, obriga alguém a falar e mandá-lo embora. E alguém fala, ao fim de algum silêncio. Falam a língua da união e iniciam uma conversa vaga ou complexa. Parece que o silêncio tem uma certa vontade de unir as pessoas. Saberá ele o que se passa, quando duas pessoas estão juntas? Saberá o silêncio, do bela que é a harmonia de gente a falar, a amar e a viver? Penso que o silêncio vive muito mal. Vive num mundo onde não há ouvidos. Vive num mundo sem músicas, sem conversas e sons naturais. Ainda assim, acredito que talvez viva num mundo com cultura, pois os museus são silenciosos à noite e ninguém o pode perturbar quando reflecte sobre as obras de um pintor consagrado e adorado. Talvez, ainda assim, ele viva apenas num mundo onde todos estão mortos e onde fala, claro. Que mórbido pensamento! Mas contudo, adequado penso eu. O silêncio vive sozinho, coitado. E mesmo o mudo e surdo provoca som sem sabe-lo. Vive abandonado. Este silêncio que me invadiu à pouco, volta. O som à minha volta caiu. Escrevo devagar, agora. Não quero ouvir nada. Quero a total ausência de som. Quero o silêncio. Deixo-o comigo, só por um pouco. Quero percebe-lo, quero entende-lo. E tão rápido veio como se foi. O barulho voltou a tocar-me. Uma melodia começa a tocar, a discussão volta a acender e ao longe o som estranho repete-se. A refeição na minha cozinha branca já começa a cheirar. Começo a cheirá-la…
O cheiro! Quão divertido deverá ser o cheiro, sempre acompanhado por alguma coisa ou alguém, pois nunca vem só! Sempre acompanhado e sempre com um aroma diferente. O cheiro.
Que posso dizer do cheiro?

9.12.08

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